¿HÉROE O VILLANO?

¿HÉROE O VILLANO?

viernes, noviembre 05, 2010

O homem que rompeu com a Humanidade


No começo, achei que fosse apenas mais um sem-teto (eufemismo criado
para os bons e velhos mendigos de outros tempos). Barbudo, esfarrapado,
sujo, ele andava pelo meu bairro com um saco de tralhas nas costas.
Aparaentava uns 40 anos, a idade em que todo homem sente vontade de
jogar tudo para o alto.

Não dei muita importância, nem quando o vi, com uma pedra na mão,
rabiscando caracteres ininteligíveis na calçada. Fileiras e mais fileiras de
frases que pareciam só fazer sentido para aquele misterioso forasteiro.

Logo, o segurança da rua veio avisar.

_ Não deem nada para ele, porque ele fica uma fera _ advertiu, ao
primeiro sinal de que algum morador estava compadecido da situação do
mendigo.

Já conhecendo o pragmatismo dos seguranças, achei que ele havia
inventado aquilo para que ninguém desse comida ou roupas ao andarilho
e, assim, ele fosse embora do bairro.

Mas um dia, eu mesmo vi. Uma senhora tentou dar a ele um cobertor
e ele seguiu andando apressadamente, sem olhar para trás. Deixou a
mulher no meio do caminho, embora aquelas madrugadas de inverno
tivéssem sido mais frias do que de costume.

Foi então que fiz a descoberta mais surpreendente sobre aquele homem:
ele simplesmente rompera relações com a Humanidade.

Além de não falar com ninguém, jamais, em circunstância alguma, o
homem só se alimenta nas cestas de lixo do bairro. Só come o que
encontra e, se não encontra nada, não come. Pedir, nunca. Claro que viver
como um heremita numa metrópole como o Rio de Janeiro tem seu preço.
E ele escolheu pagá-lo. Não tem casa, não tem comida, não tem roupa,
mas é a única pessoa totalmente livre e independente que eu conheci até
hoje.

Seria mudo? Autista? Alienado mental?

Começando pela última, débil ele não é. Cheguei à essa conclusão quando
o vi cheirando cuidadosamente um vidro com restos de molho de tomate
que havia acabado de garimpar numa lixeira. Não chegou ao requinte
de olhar a data de validade, mas a preocupação em saber se não estava
estragado revelou um inesperado instinto de sobrevivência.

Também descobri que ele dorme muito bem escondido, às vezes entre os
arbustos de meio metro de altura de uma praça pouco frequentada. Em
tempos de choque de ordem e de acolhimento compulsório de mendigos
nas ruas do Rio, saber encontrar um lugar bem camuflado para passar as
noites é fundamental.

Já o vi bebendo, embora nunca embriagado. Como não se relaciona com
nada que cheire a ser humano, ele não compra, não pede dinheiro. Se
encontra uma garrafa de vinho pela metade, bebe. Se encontra um maço
com dois ou três cigarros amassados, fuma-os. Mas só se o destino lhe der
de presente.

Mas a minha maior surpresa foi descobrir que ele também não é mudo.
Foi no dia que o vi cantando.

_ Ô, jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu...

E repetia sempre essas duas frases, como num mantra carnavalesco,
cantado com vigor, mas sem sombra de euforia.

Sentado numa esquina deserta, olhar ora perdido, ora atento ao redor, ele
canta.

_ Ô, jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu...

Ele não é louco, não é mudo.

Apenas optou por viver à margem de todos nós. Apagou seu passado e
abriu mão do futuro.

O único homem livre que conheço.

E que, apesar de tudo, algumas vezes invejo.

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