Um madrilenho se despede de Iemanjá
O povo brasileiro possui uma invejável vocação de felicidade. E isso não se ensina, nem se aprende
Salvador (Bahia)
- E por que lhe ofertam um espelho?
- Porque a deusa Iemanjá é vaidosa. E bonita. Dessa forma pode ver a si mesma.
- E a esse outro, o Marinheiro, por que lhe oferecem uma garrafa de cachaça?
- Porque é um orixá marinheiro e beberrão.
Eu pergunto e Marisa, membro de um terreiro de Candomblé de Salvador, responde com uma naturalidade vencedora e um sorriso precioso. Ao redor, a praia do Rio Vermelho, na capital baiana, se ilumina pouco a pouco com a luz do amanhecer da Bahia. São seis horas da manhã. É dois de fevereiro, Dia da Festa de Iemanjá, a Rainha do Mar, uma as maiores festas religiosas do Brasil. Uma mulher vestida de branco, em cima de uma rocha à beira-mar, passa uma rosa branca pelo rosto e ombros. Fica quieta, imóvel, hesitante. Parece pensar em algo, desejar algo, pedir algo. Depois lança decidida a flor ao mar, como oferenda a Iemanjá, dá meia volta e vai embora, com outro sorriso na boca. Há uma fila de dezenas de pessoas todas vestidas de branco, que passarão pela casa da deusa, erigida em uma colina em frente à praia, ao lado de uma colônia de pescadores. Outra multidão abarrota a praia. Alguns dançam, outros passeiam, outros tiram fotos, muitos outros olham hipnotizados o balanço da água, o vaivém dos barcos dos pescadores que saem e entram levando os que preferem homenagear Iemanjá lançando seus presentes mar adentro. Existe um tráfego incessante de barcas e barcos pequenos carregados de pessoas sempre de branco com ramos de flores e espelhos. Por todos os lados sentimos o cheiro do perfume de lavanda preferido da deusa e que muitos jogam no mar depois de lavar os braços e o rosto com ele.
Vivo há dois anos e meio no Brasil e passei todo esse tempo me perguntando:
- E se o candomblé é outra religião, por que essa senhora joga perfume no mar para Iemanjá e depois faz o sinal da cruz?
- Porque aqui está tudo junto – responde Marisa, dando uma imbatível definição de sincretismo religioso. E do próprio Brasil.
Passa uma mulher belíssima vestida como Iemanjá, envolta em uma túnica azul celeste. Passa uma pessoa em trajes de banho com o cabelo rastafári no tornozelo. Próximo, um grupo de membros de uma mesma congregação de umbanda começa a dançar em roda. Um toca tambor e dois tocam pandeiros. Os outros batem palmas. Mais nada. Percussão, palmas e gritos. É música tribal, africana, antiga, velha, intocada, chegada a essas praias há muitos anos junto com os deuses que hoje são homenageados. Quem tem vontade entra na roda e dança. Os outros aplaudem. Existem casais que entram ao mesmo tempo e então a dança é decididamente sexual, explícita, descarada, carregada disso que é simplesmente vontade de viver. Entre os sisudos musicólogos se discute se o samba apareceu no Rio ou em Salvador. Eu diria que o samba nasceu hoje, nessa praia, às sete da manhã. E voltará a nascer no ano que vem.
- E você, o que pede a Iemanjá?
- Harmonia, paz e saúde.
- E dinheiro?
- Dinheiro não, a deusa não gosta que peçam essas coisas –, responde Marisa, com o mesmo sorriso que é sua marca registrada.
Em outro grupo de candomblé, na beira do mar, uma mãe de santo vestida de branco e com um turbante azul brilhante armado ao estilo da Bahia dança sozinha no meio de outra roda de dezenas de pessoas, dá voltas sobre si mesma, canta, faz com que o resto a siga, fecha os olhos, balança, se abraça, entra em transe, gagueja, cai, desmaia. Outra mulher vai ajudá-la, enxuga o suor de seu rosto, a ajuda a se levantar, lhe dá um sorriso. Todos aplaudem e a mãe de santo começa novamente, com outra canção, fazendo com que os dos tambores sigam seu ritmo. Mas ainda está um pouco tonta: incorporou, como dizem aqui, isso é, o orixá, o deus, entrou nela, tomou conta de seu corpo durante a dança. Encarnou nela. Rezou com ela, dançou com ela.
- É magia. Não se lembram. Quando voltam a si não se lembram. Invocam os orixás com a música, com os tambores, depois não se lembram. Não conseguem explicar muito bem.- E o que acontece quando incorporam, o que sentem?
Marisa continua sorrindo. Só que agora mais enigmaticamente.
Eu imagino ter entendido um pouco das velhas religiões africanas praticadas no Brasil quando, em outro terreiro de umbanda, também à beira-mar, protegido do sol por um guarda-sol gigante, um padre católico com mitra celebra uma missa diante de uma escultura de Iemanjá e outros orixás. Reza um pai-nosso ortodoxo e eu sinto que voltei ao ponto de partida, que continuo sem entender nada.
Talvez seja preciso apelar a esse “está tudo junto” de Marisa, ou talvez na verdade não exista muito a se entender e que o segredo, simplesmente, esteja em se apropriar dessa vontade de viver que exalava o casal do samba e esse sol e esse mar e essa multidão entusiasmada disposta a aproveitar o dia.
Porque às onze da manhã a deusa está satisfeita no fundo do mar, empanturrada de perfume de lavanda, rodeada de milhares de espelhos e flores.
Mas em terra firme a festa continua. Continuará até domingo, até quase o Carnaval. O povo brasileiro possui uma invejável vocação de felicidade. E isso não se ensina, nem se aprende. Gostaria que assim fosse, pensei comigo mesmo: levaria na bagagem. Porque me lembrei, enquanto via outra mulher de branco depositar delicadamente uma rosa azul em uma onda que retrocedia, que em dez dias voltarei a Madri. Sentirei saudades da Bahia, sentirei saudades do Brasil.
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